quarta-feira, 11 de junho de 2014

Ganhando Um Troco

Foto: Eugenio Lorainev
Outro dia, enquanto posava e curtia minha “imobilidade ilusória” (falarei sobre isso mais pra frente), meus ouvidos captaram um comentário ao longe. Uaawww, adoro quando isso acontece! Risos, acho mesmo que a ilusão da imobilidade toma conta das pessoas enquanto nos observam, pois algumas delas realmente acham que sequer ouvimos. Bom, voltando ao comentário que bateu latejante em meu ombro, que estava ali a observar a sala toda e passava agora a expressar seu espanto com o que ouvia, ficou nítido o quanto nosso corpo é influenciado pelo espaço e pelo que ocorre nele.
Um rapaz, de aproximadamente 25 anos, dizia ao professor que se interessava pela ideia de posar “pelado” para ganhar um troco, já que a sua dívida na lanchonete da faculdade estava aumentando. Isso, isso mesmo, riam e riam muito se puder, pois eu aqui agora escrevendo e relembrando o que tinha ouvido, também estou a morrer de rir. Enfim, para piorar ainda mais a situação da estátua surda, o professor o responde dizendo que seria primeiro preciso ele experimentar o trabalho sem cobrar nada, em algum ateliê particular de pintura, para depois então passar a ganhar uns trocos por ele.
Vamos por partes: O interesse pela atividade é muito comum, primeiramente por suscitar um ganho fácil de muito dinheiro e também por parecer que qualquer pessoa é capaz de realizá-la, sem ter de fazer nada. Para este tipo de pensar já respondo que não, não se ganha muito dinheiro com esta profissão. Infelizmente ela ainda não é vista como tal, como deveria, e muito menos valorizada por isso. Estima-se, ainda arcaicamente, que tirar a roupa e se mostrar para as pessoas é algo que  se faz por que não se faz outra coisa. Sendo assim, na “falta de” paga-se o quanto puder para aquele que “nada tem a fazer”. Este conceito, infelizmente, ainda reina. E claro, pela mudança dele é que também trabalho.

O pagamento pela exposição do corpo é muito relativo. Se o modelo realmente só está ali para mostrar sua pele, também acho que deva ganhar o equivalente à sua intenção, mas se há uma proposta um pouco mais inteira, o valor que é feito, é feito sempre com a determinante de um juízo relativo (que erroneamente depende de tempo, quantidade e/ou dificuldade de poses, quantidade de alunos ou artistas presentes, lugar onde se está acontecendo a sessão, entre vários outros). Tudo numa tentativa de justificar a existência do modelo naquela situação. Há ainda os que pensam “mas ele não está a fazer nada, então por que pagar tanto?”. Por isso e por tantos outros motivos, ainda se ganha pouco por um trabalho desses. E, como vemos no exemplo em que meu ombro ouviu, há pessoas que o fazem de graça, para se iniciarem na “ganhação de trocos” e, sendo assim, os clientes podem sempre se valer de iniciantes para não terem que pagar nada, ou então escolherem modelos que o fazem por tão pouco, pois realmente não farão nada, já que não sabem o que fazer.

Digo que erroneamente depende de alguns fatores por que não cobro por mostrar o ombro assim ou assado, ou por mostrar o bumbum nu ou vestido, ou ainda por mostrar-me nu em pé, sentado ou apoiado sofrendo mais, ou menos, pela exposição. Não. Cobro é pela exposição e coparticipação de tudo o que meu corpo e eu propomos numa performance, para que as pessoas observem e aprendam/exercitem algo com isso. Fatores como tempo, local e propósito, muitas vezes podem e devem influenciar o custo, porém não são determinantes, já que o que deve ser considerada é a possibilidade de se observar, tão atentamente, um ser humano que está ali completamente disponível com tudo o que é e tem para ser observado. 
Foto: Eugenio Lorainev

Vejo, nestes anos todos, inúmeras pessoas se aventurarem no trabalho peladístico. Ou por quererem ganhar o tal troco, ou por estarem sem fazer nada e não se importarem com sua peladice, ou pelo fetiche da nudez própria aos voyeristas, ou ainda por acharem tão exótico tal trabalho. Porém também vejo, nestes mesmos anos, estas pessoas não passarem de suas segundas ou terceiras sessões de trabalho. E isso, é claro, por que atenderam seu propósito em poucas tentativas, e também por que não se sustentam como profissionais e os próprios clientes, mais dia menos dia, percebem que não estão contribuindo muito, aí então, trocam o biotipo.

Experimentar este trabalho, sem cobrar nada, para adquirir alguma experiência e então depois disso passar a ganhar, é uma prática que desvaloriza o ofício de quem o exerce com profissionalismo. Deprecia o trabalho de quem se prepara tanto, física e intelectualmente, para exercê-lo. Perpetua o errado conceito sobre a nudez artística. Empobrece os desenhos e resultados artísticos advindos de sua observação. Tira oportunidades de trabalhos daqueles que são profissionais no que fazem. Generaliza o despreparo e descontinuísmo destes modelos aventureiros, prejudicando a credibilidade do próprio ofício. Bloqueiam as possibilidades de valorização dos cachês pagos a profissionais. E aqueles que “cobram menos”, no início de suas tentativas, desconsideram a ética e depreciam também o trabalho realizado por profissionais.

É necessário que, quando há o interesse por esta atividade e que não seja superficial, a pessoa entenda que precisará ter o que expressar com sua nudez e que ela não seja o propósito do trabalho. A nudez é o que transporta suas intenções, seus propósitos, sua expressão, seu conteúdo. Então a pessoa há que buscar este conteúdo, estudá-lo para propor interações, se informar e se preparar, testando ou exercitando a prática em casa, sozinha, diante do espelho que seja. E depois de muito preparo, encontrar alguém que tope o desafio de observá-la. Aos aventureiros de plantão: pensem que profissionais perdem com suas tentativas sem fundamento, que o próprio ofício e a Arte se prejudicam. E, acreditem, desta forma não conseguirão quitar por muito tempo suas dívidas em lanchonetes.
Foto: Eugenio Lorainev
Foto: Eugenio Lorainev
De volta à pose, o ombro que a princípio compunha uma imagem de altruísmo proposta por mim, passou a ser lido por olhos influenciados pela falta de conteúdo do comentário infeliz do aluno. E consequentemente, o aproveitamento daquela observação foi prejudicado. Minha pose passou a gerar interpretações da compaixão, ao invés da solidariedade proposta no início. É por isso que é tão importante a compreensão do que, como e para que fazemos as coisas. E definitivamente não fazemos este trabalho para compor nosso orçamento, “ganhando um troco” enquanto não temos outra coisa para fazer, como muitos pensam, pois se assim é feito, assim é muito mal feito e não perdurará!
Foto: Eugenio Lorainev

Um comentário:

  1. Excelente texto! Acredito que, no Brasil, temos a desvalorização em geral como uma característica cultural, pois como se diz, o brasileiro "gosta" de levar vantagem em tudo, assim, se pudermos pagar pouco, e menos ainda, é bom. Se pudermos pagar "nada" às vezes ainda achamos caro!! Um vez conversei com uma colega brasileira que mora nos Estados Unidos há mais de 20 anos, e ela, com o marido, são proprietários de um restaurante, e ela me afirmou, que os americanos não gostam de atender os brasileiros porque eles são "cheap"... "barato", no sentido de que não valorizam os profissionais... os garçons e carregadores de malas, por exemplo, nos Estados Unidos, normalmente recebem uma gorjeta pelo atendimento prestado, e os clientes brasileiros nunca oferecem esse mimo... Escrevo esse comentário, porque sou fotógrafo, e enfrento como profissional, um dilema parecido. Os clientes querem um serviço e um produto, mas não querem pagar por isso o que é justo! E muitos profissionais agem da mesma forma que os aventureiros descrito acima, ou seja, trabalham de graça, desvalorizando ainda mais nossa profissão... É importante trabalharmos, todos, para mudar esse paradigma.

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